Nove mil hectares ardidos, uma perda de biodiversidade e identidade que não se consegue estimar. Cinco anos após o incêndio que devastou quase 90% da Mata Nacional de Leiria, voltamos ao terreno para perceber como é que se renasce das cinzas.
Quando o incêndio que consumiu a Mata Nacional começou, o segundo-comandante Mário Silva não estava nos Bombeiros da Marinha Grande. Tinha sido chamado horas antes para reforçar aquele que foi o primeiro grande incêndio do dia na região de Leiria, com ignição em Alcobaça. “Era um domingo, estava a fazer o almoço quando me ligaram e perguntaram se tinha a mala feita. Respondi que, como sempre, tinha e fui”, recorda. Só voltaria a casa três dias depois. “A comida até foi para o lixo, ninguém tinha apetite para comer.”
Às 22h00, quando teve ordem de substituição e voltou à sua corporação, “o cenário era dantesco”. “O incêndio já tinha passado três concelhos a uma velocidade nunca antes vista e avançava em linha reta, numa frente fina, parecia que tinha vida própria”, continua Mário Silva, afirmando que a prioridade era, como é sempre, defender casas e povoações. “Sentimo-nos muitas vezes na posição do diabo, a escolher o que arde, mas o vento estava de sul, que não é nada habitual.”
O que restou daqueles dias de horror em outubro de 2017 foi, como diz, uma sombra do que era. Dos mais de 11 mil hectares de plantação ficaram apenas 14%, ou seja, pouco mais de 1,5 mil hectares numa zona que, como afirma o segundo-comandante, “o fogo quis poupar”. E ainda que a maior parte do incêndio tenha sido extinto ao segundo dia pela chuva, os Bombeiros da Marinha Grande estiveram até ao Natal a receber alertas de reacendimentos e falsos alarmes: “A sensação de orgulho que sentia quando lá passava foi substituída por um nó na garganta. E qualquer alerta para aquela zona continua a mexer connosco”.
Cinco anos depois, os trabalhos de recuperação avançam, com foco na reflorestação e na devolução de espaços às populações. Segundo dados do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), já foram rearborizados 1,9 mil hectares, enquanto 1,8 mil hectares estão em processo de regeneração natural. Tem sido um esforço conjunto entre Estado e sociedade civil, desde a população da Marinha Grande até às empresas, que também sentem a responsabilidade de restaurar um dos principais marcos naturais do nosso país.
Nesta nova temporada de Bravos Heróis, a quarta, a atenção foca-se nos esforços que todos os atores sociais têm feito para criar um país mais sustentável em todas as suas dimensões, uma vez que para proteger as florestas e garantir um Portugal sem fumo também está dependente da construção de uma sociedade equilibrada e sustentável. “Sustentabilidade que não se circunscreve ao ambiente”, aponta o presidente da Tabaqueira, Marcelo Nico. “E é por isso que, não só na nossa organização, como na vida, olhamos para a sustentabilidade a 360º.”
Um pinhal com história
Viviam-se tempos difíceis no século XIII, quando foi necessário proteger as dunas da região do Oeste, bem como as plantações agrícolas. As forças da natureza estavam a deteriorar a barreira natural entre o oceano e o Homem, levando areias para as plantações. Assim, D. Dinis avançou-se para a plantação de pinheiros numa área que se estende ao longo da costa por todo o concelho da Marinha Grande. A partir daí, a mata passou a fazer parte da vida de todos aqueles que vivem nas localidades vizinhas, daqueles que lá passavam férias e daqueles que dela retiravam sustento.
“Os marinhenses fizeram literalmente tudo o que havia para fazer naquela mata, de piqueniques a jogar à bola. Muitos iam lá buscar pinhas e caruma para criarem os animais, outros, como o meu avô que era resineiro, tinham lá o seu sustento”, aponta Aurélio Ferreira, presidente da Câmara Municipal da Marinha Grande relativamente àquela que é a maior mata nacional. “É uma relação de afetividade que está na nossa identidade.” Era também a casa para dezenas de espécies de fauna e flora, desde logo os pinheiros-bravos, mas também carvalhos, ciprestes e eucaliptos, passando pelos esquilos, ratos, toupeiras, ouriços-cacheiros, as raposas ou as lontras.
A gestão deste território tão extenso foi depois facilitada com a criação de talhões, 342 áreas retangulares com áreas aproximadamente iguais, de cerca de 35 hectares, que eram geridas como organismos com vida própria: tinham um “bilhete de identidade” onde era registada a sua história, quando tinha sido plantado, com quê, quando deveriam ser as manutenções e desbastes, etc. “Foi um trabalho extraordinário”, considera Aurélio Ferreira, que afirma que o cuidado do Estado, o gestor deste território, permitiu até o início deste milénio a criação de um ecossistema rico e cuidado.
Atualmente, o desafio é outro. As alterações climáticas trouxeram-nos a um ponto em que é a área de floresta que precisa de ser protegida de fogos de dimensões nunca vistas, através de um planeamento florestal rigoroso, de uma gestão de combustível infalível e de uma tomada de consciência geral em relação aos tempos que vivemos. Porque Portugal é dos países mais suscetíveis às consequências nefastas do aquecimento global.
Os especialistas falam de incêndios de sexta geração, um fenómeno cujos ingredientes principais incluem condições climáticas extremas, topografia e uma paisagem homogénea que, devido ao abandono das práticas tradicionais, criou um tipo de combustível inédito. Surgem assim incêndios que são autênticas tempestades de fogo cuja velocidade e voracidade podem consumir mais de 4000 hectares por hora.
“Os últimos incêndios a que temos assistido têm um comportamento eruptivo que antigamente não era habitual. E se no passado o padrão de incêndios era cíclico, as coisas que ardiam este ano não ardiam no próximo, já não é assim”, afirma o segundo-comandante dos Bombeiros da Marinha Grande, Mário Silva, dando como exemplo um incêndio de 2018 que deflagrou na área que tinha ardido antes. “Já havia combustível para isso.”
Reerguer a Mata
A criação de florestas resilientes torna-se assim uma prioridade numa altura em que o aumento da temperatura, a seca extrema e o racionamento de água deixaram de ser uma miragem. “Está nas mãos de todos lutar por uma floresta mais viva, mais verde, sem chamas nem fumo”, afirma Marcelo Nico, diretor-geral da Tabaqueira. “Assim, criar uma floresta resiliente implica o contributo de decisores, organizações e sociedade civil. As alterações climáticas e a progressiva desertificação contribuem para este flagelo que, mais cedo ou mais tarde, impactará todos.”
Na Mata Nacional de Leiria, esse processo começou assim que as chamas foram apagadas, especialmente com o esforço de populares e de empresas que quiserem pôr mãos à obra e contribuir para trazer vida às cinzas. “Muita da reflorestação inicial foi feita pela sociedade civil num processo que, no meu ponto de vista, é de cidadania. Muitas empresas dedicaram-se à plantação de talhões inteiros, enquanto muitos marinhenses passaram muitas horas a plantar árvores, incluindo eu”, recorda Aurélio Ferreira. “Esse esforço ainda continua, mas é já mais residual”.
O processo oficial de reflorestação está nas mãos do ICNF, que avança agora com o Plano de Gestão Florestal. Até então já terão sido investidos perto de 2,3 milhões de euros na recuperação de área ardida, restauro e valorização ambiental dos ecossistemas, aumento da resiliência dos povoamentos florestais aos agentes bióticos e a requalificação dos espaços e dos equipamentos dedicados ao recreio e lazer.
Já se cumpriu a rearborização de 1.946 hectares de mata dos 4.797 previstos, o que implica a plantação de 5.996.606 árvores. Até então, já foram plantadas 2.432.273, mas que não são apenas pinheiros, bravos e mansos, num esforço por investir também em espécies que sejam mais resistentes aos incêndios. O ICNF fala de plátanos, carrascos, carvalhos de diversas espécies, medronheiros, sobreiros, samoucos, sabinas-das-praias, freixos e borrazeiras-pretas.
Também se deu oportunidade à Natureza de seguir o seu curso através da regeneração natural, ou seja, esperando que as sementes que resistiram ao fogo e ficaram na terra levassem o seu tempo a crescer. Estão nesse processo 1.773 hectares de terra. E a diferença é bastante vincada olhando agora para a mata: enquanto as árvores plantadas estão a crescer alinhadas e espaçadas, as que regeneraram naturalmente estão a crescer à vontade, como “cogumelos”, define o presidente da Câmara.
A gestão deste território não se fica, no entanto, por estas duas atividades. As espécies invasoras, como é o caso das acácias, estão a ganhar terreno por serem de crescimento mais rápido e de elevada resistência. “E num terreno onde há acácias, não crescem pinheiros”, resume Aurélio Ferreira. Todas as áreas intervencionadas continuam a precisar de limpeza e desbaste para evitar a criação de um “barril de pólvora” de combustível. Por fim, há que devolver a Mata às pessoas e, para isso, é preciso criar condições para que elas se sintam bem-vindas: estradas, parques de merendas, trilhos e diversos pontos de lazer. Neste campo já terão sido investidos mais de 840 mil euros.
“Infelizmente, já me convenci de que a minha geração não vai voltar a ver a Mata como antigamente, o meu tempo de vida não é suficiente para me voltar a sentar à sombra de um pinheiro. Mas temos a responsabilidade de garantir que as próximas gerações o consigam fazer”, conclui o presidente da Câmara. Esse trabalho está na mão de todos nós.